Nasce uma esperança
Maior ave de rapina das Américas, a harpia não resiste às perdas impostas pelo homem, mas há quem lute para salvá-las
06/11/2012 - 09:10
O telefone toca em nossa redação. Em meio ao costumeiro caos de conversas, sons de TV e computadores em ação, reconheço o sotaque e a voz emocionada de Linda Wittkoff, presidente da Fundação Lymington: “O ovo já está fazendo pi-pi-pi!” É a notícia que estamos esperando há mais de um mês, desde que acompanhamos a transferência de dois ovos de harpia (Harpia harpyja) – a maior águia das Américas – para uma incubadora, no criadouro da fundação, localizado no interior de São Paulo.
Filhotes de aves de rapina piam ainda dentro do ovo, um ou dois dias antes de romper a casca. Por isso o telefonema nos mobiliza de imediato. Mas a reportagem logo se converte em luto: o filhote chega a nascer, mas não sobrevive ao primeiro dia!
A harpia pertence à família dos gaviões –Accipitridae – e é a única espécie do gênero. O bico negro e curvo soma-se a um dos mais poderosos conjuntos de garras (com algumas unhas maiores do que as dos ursos pardos), constituindo suas principais armas de caça e defesa.
De acordo com Helmut Sick, no livro Ornitologia Brasileira, sua distribuição se estende do Sul do México e América Central (ao Norte) até a Bolívia (a Oeste) e até o Norte da Argentina (ao Sul), sempre em áreas de mata. Possui ouvidos apurados e um disco de penas em torno da cabeça, que se acredita auxiliá-la a identificar de onde vêm os sons, como fazem as corujas.
Ágil e rápida, é uma predadora altamente eficiente, capaz de se lançar sobre a presa em vôos curtos e fulminantes, em meio às copas das árvores. A fêmea é maior do que o macho. Chega a ter 90 centímetros de altura e 2 metros de envergadura de asas, pesando até 9 quilos. A fêmea também preda animais maiores – preguiças, ouriços, quatis e macacos –, enquanto o macho ataca presas um pouco menores – gambás, roedores e aves. A combinação das duas estratégias de caça aumenta o sucesso do casal – que é monogâmico, ou seja, se mantém fiel durante toda a vida – na obtenção de comida.
Nada disso, no entanto, livra a espécie das ameaças à sua sobrevivência impostas pelo homem, como a perda de hábitat por desmatamento e a fragmentação de florestas. A nossa harpia ainda sofre a pressão do tráfico internacional de animais silvestres. O preço pago pelos colecionadores por uma ave viva gira em torno de US$ 20 mil, segundo o relatório da Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas).
Muitas vezes não é possível soltar as aves apreendidas de traficantes ou colecionadores – porque elas estão feridas, foram mutiladas ou não se sabe a região de origem –, então elas são encaminhadas a criadouros ou zoológicos. Não é difícil mantê-las em cativeiro, mas as tentativas de reprodução freqüentemente resultam em fracasso. Existem registros de postura de ovos férteis em apenas 10 instituições de todo o mundo e, na maioria das vezes, os filhotes nem chegam a nascer. Somente 56 dos filhotes nascidos em cativeiro sobreviveram além do primeiro dia, 33 deles no Centro de Aves de Rapina Neotropicais do Panamá. No Brasil, apenas a Sociedade de Pesquisa da Fauna Silvestre, também conhecida como Crax, obteve sucesso, criando 10 filhotes em seu centro de Belo Horizonte (MG).
Posteriormente Linda recebe mais um ovo fertilizado. O cuidado é redobrado e se organiza uma verdadeira ‘torcida’ pela eclosão do ovo e sobrevivência do novo filhote. Linda conta com o apoio e a dedicação das duas responsáveis técnicas dos dois criadouros, a bióloga Érica Pacífico e a veterinária Juliana Anaya Sinhorini, ambas mestrandas da Universidade de São Paulo (USP), além de mobilizar uma rede internacional de especialistas, via internet, sempre à disposição para todo tipo de consulta.
O filhote nasce num domingo de Páscoa, como convém a um símbolo de esperança. Pesa 110 gramas e logo entra no soro, monitorado 24 horas por dia. A fase crítica dos primeiros dias é ultrapassada com uma alimentação especial à base de camundongos, ‘fabricada’ em casa e ministrada 5 vezes ao dia com a ajuda de um fantoche de águia e ao som de vozes de harpias adultas. O recinto de alimentação é um aquário com um vidro espelhado, para que o filhote não veja a bióloga manipulando o fantoche.
“Embora essa harpia não se destine à soltura, porque acostumou-se a conviver com gente, é importante que ela associe a alimentação com uma figura de águia, para não haver distorções em seu comportamento”, explica Érica. A experiência com aves criadas sem os fantoches mostra que elas passam a se considerar humanas e chegam a se ‘apaixonar’ pelo tratador, apresentando comportamentos de corte ao atingir a maturidade sexual. Ou então tratam as pessoas como filhotes, oferecendo comida e até proteção. E tais distorções dificultam futuros pareamentos e a reprodução.
Criar um filhote, portanto, demanda uma grande quantidade de energia por parte do casal, razão pela qual o intervalo entre crias é longo, de 2 a 3 anos. E se, por azar, um dos pais morre antes de o filhote aprender a caçar, o outro não consegue terminar de criá-lo sozinho. O alto investimento parental, como é tecnicamente chamada essa dedicação dos pais, determina um ritmo lento de crescimento da população de harpias, muito distante do mínimo necessário para compensar as perdas impostas pelo homem.
O tamanho, a velocidade de voo e a ferocidade da harpia deram origem a seu nome – comum e científico – inspirado nas terríveis mulheres-águia da mitologia grega. Filhas do gigante Tifão– o deus da seca e dos furacões – e deEquídina – meio serpente, meio mulher – três são as harpias gregas: Aelo, a tempestade;Ocípite, a ventania ou voo rápido, e Celeno, a obscura.
Elas são representadas como águias com rosto e seios de mulher. Como executoras das vinganças engendradas pelos deuses, em rápidas investidas capturam pessoas com suas garras afiadas e as levam para o mundo subterrâneo. São consideradas irmãs de alguns monstros mais conhecidos, combatidos por heróis e semideuses, como o Cérbero, cão de três cabeças, guardião das portas do inferno; a Hidra de Lerna, com corpo de dragão e várias cabeças de serpentes; a Quimera, corpo e cabeça de leão e duas cabeças adicionais, uma de cabra e outra de serpente; e a Esfinge, com corpo de leão, asas de águia e cabeça de mulher.
Os outros dois nomes comuns da harpia derivam de seu porte e imponência: gavião-real e uiraçu-verdadeiro (do tupi-guarani guira = ave e açu = grande).
A eclosão do segundo ovo de harpia confiado à Fundação Lymington e a sobrevivência do filhote não teriam sido possíveis sem a contribuição diária de três pessoas do Fundo Peregrino: Magaly Linares, diretora da instituição no Panamá; Saskia Santamaría, supervisora técnica, também do Panamá; e Cal Stanford, especialista em criação de aves de rapina em cativeiro, do Fundo Peregrino em Idaho, nos Estados Unidos.
“Sem as dicas e a atenção deles não teríamos conseguido chegar até aqui”, reitera Linda Wittkoff, a ‘mãe adotiva’ do ‘nosso’ filhote. “Ainda mantemos uma troca diária de e-mails, discutindo o tipo e a quantidade de comida e repassando as informações de ganho de peso e condições de saúde”.
No Panamá, o Centro de Aves de Rapina Neotropicais, mantido pelo Fundo Peregrino, conduz um programa de conservação de águias, falcões, gaviões e corujas em vida livre e cria aves em cativeiro para introdução na natureza. Onze harpias já foram soltas desde 2004, as últimas três nas florestas de Belize, Guatemala e México.
Um ninho na periferia
Na Amazônia, os casais de harpia constroem ninhos em árvores altas, a 30 ou 40 metros do chão. Com cerca de 1 metro de diâmetro, eles são feitos de galhos entrelaçados e forrados com folhas e ramos mais macios no interior. O ninho costuma ser reformado e reutilizado a cada nova postura. E os cuidados para mantê-lo limpo e arrumado incluem deveres para todos os membros da família. Mesmo pequeno, o filhote instintivamente ‘atira’ longe as fezes, sem nunca manchar sua ‘casa’.
Um casal com um filhote foi casualmente descoberto num remanescente de mata da periferia da cidade, perto do aeroporto e do hotel Floresta Amazônica, freqüentado por muitos observadores de aves. Desde então, fazer a trilha para tentar ver a harpia é uma opção disponível para os hóspedes.
A pedido de fotógrafos especializados e repórteres, a proprietária do hotel, Vitória da Riva Carvalho, construiu uma plataforma, sobre a qual o fotógrafo e cinegrafista de nossa equipe, Carlos Alberto Coutinho, fez plantão durante alguns dias, registrando as primeiras tentativas de voo do filhote, que reproduzimos nestas páginas.
* Essa matéria foi produzida originalmente para a revista Terra da Gente, edição número 38, de junho de 2007. Faz parte do BibliotECO, área do site Terra da Gente destinada a abrigar o arquivo da publicação.
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