segunda-feira, 18 de março de 2013

Nasce uma esperança


Nasce uma esperança

Maior ave de rapina das Américas, a harpia não resiste às perdas impostas pelo homem, mas há quem lute para salvá-las

06/11/2012 - 09:10
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O telefone toca em nossa redação. Em meio ao costumeiro caos de conversas, sons de TV e computadores em ação, reconheço o sotaque e a voz emocionada de Linda Wittkoff, presidente da Fundação Lymington: “O ovo já está fazendo pi-pi-pi!” É a notícia que estamos esperando há mais de um mês, desde que acompanhamos a transferência de dois ovos de harpia (Harpia harpyja) – a maior águia das Américas – para uma incubadora, no criadouro da fundação, localizado no interior de São Paulo.
Um dos ovos não estava fertilizado – gorou, como se diz no jargão popular. Mas o outro era uma boa promessa, cuidadosamente acompanhada por Linda, que, na verdade, está acostumada a criar psitacídeos, com sucesso inclusive na reprodução de espécies ameaçadas de extinção.
Filhotes de aves de rapina piam ainda dentro do ovo, um ou dois dias antes de romper a casca. Por isso o telefonema nos mobiliza de imediato. Mas a reportagem logo se converte em luto: o filhote chega a nascer, mas não sobrevive ao primeiro dia!
A harpia pertence à família dos gaviões –Accipitridae – e é a única espécie do gênero. O bico negro e curvo soma-se a um dos mais poderosos conjuntos de garras (com algumas unhas maiores do que as dos ursos pardos), constituindo suas principais armas de caça e defesa.
De acordo com Helmut Sick, no livro Ornitologia Brasileira, sua distribuição se estende do Sul do México e América Central (ao Norte) até a Bolívia (a Oeste) e até o Norte da Argentina (ao Sul), sempre em áreas de mata. Possui ouvidos apurados e um disco de penas em torno da cabeça, que se acredita auxiliá-la a identificar de onde vêm os sons, como fazem as corujas.

Ágil e rápida, é uma predadora altamente eficiente, capaz de se lançar sobre a presa em vôos curtos e fulminantes, em meio às copas das árvores. A fêmea é maior do que o macho. Chega a ter 90 centímetros de altura e 2 metros de envergadura de asas, pesando até 9 quilos. A fêmea também preda animais maiores – preguiças, ouriços, quatis e macacos –, enquanto o macho ataca presas um pouco menores – gambás, roedores e aves. A combinação das duas estratégias de caça aumenta o sucesso do casal – que é monogâmico, ou seja, se mantém fiel durante toda a vida – na obtenção de comida.
Nada disso, no entanto, livra a espécie das ameaças à sua sobrevivência impostas pelo homem, como a perda de hábitat por desmatamento e a fragmentação de florestas. A nossa harpia ainda sofre a pressão do tráfico internacional de animais silvestres. O preço pago pelos colecionadores por uma ave viva gira em torno de US$ 20 mil, segundo o relatório da Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas).
Muitas vezes não é possível soltar as aves apreendidas de traficantes ou colecionadores – porque elas estão feridas, foram mutiladas ou não se sabe a região de origem –, então elas são encaminhadas a criadouros ou zoológicos. Não é difícil mantê-las em cativeiro, mas as tentativas de reprodução freqüentemente resultam em fracasso. Existem registros de postura de ovos férteis em apenas 10 instituições de todo o mundo e, na maioria das vezes, os filhotes nem chegam a nascer. Somente 56 dos filhotes nascidos em cativeiro sobreviveram além do primeiro dia, 33 deles no Centro de Aves de Rapina Neotropicais do Panamá. No Brasil, apenas a Sociedade de Pesquisa da Fauna Silvestre, também conhecida como Crax, obteve sucesso, criando 10 filhotes em seu centro de Belo Horizonte (MG).
Por isso, quando o pareamento entre duas harpias apreendidas deu certo, em 2004, num criadouro do interior de São Paulo, a atenção das autoridades e dos pesquisadores voltou-se para lá. O casal construiu um ninho no chão e a fêmea botou vários ovos. Mas nem chegava a chocar, predando-os em poucos dias. Em 2006, o Ibama autorizou a retirada e o transporte dos ovos para a incubadeira da Fundação Lymington. Foi a tentativa frustrada, acompanhada por nossa reportagem.
Posteriormente Linda recebe mais um ovo fertilizado. O cuidado é redobrado e se organiza uma verdadeira ‘torcida’ pela eclosão do ovo e sobrevivência do novo filhote. Linda conta com o apoio e a dedicação das duas responsáveis técnicas dos dois criadouros, a bióloga Érica Pacífico e a veterinária Juliana Anaya Sinhorini, ambas mestrandas da Universidade de São Paulo (USP), além de mobilizar uma rede internacional de especialistas, via internet, sempre à disposição para todo tipo de consulta.
O filhote nasce num domingo de Páscoa, como convém a um símbolo de esperança. Pesa 110 gramas e logo entra no soro, monitorado 24 horas por dia. A fase crítica dos primeiros dias é ultrapassada com uma alimentação especial à base de camundongos, ‘fabricada’ em casa e ministrada 5 vezes ao dia com a ajuda de um fantoche de águia e ao som de vozes de harpias adultas. O recinto de alimentação é um aquário com um vidro espelhado, para que o filhote não veja a bióloga manipulando o fantoche.
“Embora essa harpia não se destine à soltura, porque acostumou-se a conviver com gente, é importante que ela associe a alimentação com uma figura de águia, para não haver distorções em seu comportamento”, explica Érica. A experiência com aves criadas sem os fantoches mostra que elas passam a se considerar humanas e chegam a se ‘apaixonar’ pelo tratador, apresentando comportamentos de corte ao atingir a maturidade sexual. Ou então tratam as pessoas como filhotes, oferecendo comida e até proteção. E tais distorções dificultam futuros pareamentos e a reprodução.
Em nossa segunda visita ao filhote de harpia, aos 36 dias de vida, ele já está com 1.559 gramas e 32 cm de altura! Ainda se apresenta todo coberto por uma penugem branca, mas os primeiros sinais das penas da cabeça começam a aparecer. Na natureza, um filhote de harpia só adquire penas e ensaia os primeiros vôos aos seis meses de idade. Mesmo depois de aprender a voar, ele continua dependendo da alimentação fornecida pelos pais até cerca de um ano de idade. E só estarão prontos para se reproduzir em torno dos 4 ou 5 anos.
Criar um filhote, portanto, demanda uma grande quantidade de energia por parte do casal, razão pela qual o intervalo entre crias é longo, de 2 a 3 anos. E se, por azar, um dos pais morre antes de o filhote aprender a caçar, o outro não consegue terminar de criá-lo sozinho. O alto investimento parental, como é tecnicamente chamada essa dedicação dos pais, determina um ritmo lento de crescimento da população de harpias, muito distante do mínimo necessário para compensar as perdas impostas pelo homem.
As harpias gregas
O tamanho, a velocidade de voo e a ferocidade da harpia deram origem a seu nome – comum e científico – inspirado nas terríveis mulheres-águia da mitologia grega. Filhas do gigante Tifão– o deus da seca e dos furacões – e deEquídina – meio serpente, meio mulher – três são as harpias gregas: Aelo, a tempestade;Ocípite, a ventania ou voo rápido, e Celeno, a obscura.
Elas são representadas como águias com rosto e seios de mulher. Como executoras das vinganças engendradas pelos deuses, em rápidas investidas capturam pessoas com suas garras afiadas e as levam para o mundo subterrâneo. São consideradas irmãs de alguns monstros mais conhecidos, combatidos por heróis e semideuses, como o Cérbero, cão de três cabeças, guardião das portas do inferno; a Hidra de Lerna, com corpo de dragão e várias cabeças de serpentes; a Quimera, corpo e cabeça de leão e duas cabeças adicionais, uma de cabra e outra de serpente; e a Esfinge, com corpo de leão, asas de águia e cabeça de mulher.
Os outros dois nomes comuns da harpia derivam de seu porte e imponência: gavião-real e uiraçu-verdadeiro (do tupi-guarani guira = ave e açu = grande).
Rede de ajuda on-line
A eclosão do segundo ovo de harpia confiado à Fundação Lymington e a sobrevivência do filhote não teriam sido possíveis sem a contribuição diária de três pessoas do Fundo Peregrino: Magaly Linares, diretora da instituição no Panamá; Saskia Santamaría, supervisora técnica, também do Panamá; e Cal Stanford, especialista em criação de aves de rapina em cativeiro, do Fundo Peregrino em Idaho, nos Estados Unidos.
“Sem as dicas e a atenção deles não teríamos conseguido chegar até aqui”, reitera Linda Wittkoff, a ‘mãe adotiva’ do ‘nosso’ filhote. “Ainda mantemos uma troca diária de e-mails, discutindo o tipo e a quantidade de comida e repassando as informações de ganho de peso e condições de saúde”.
No Panamá, o Centro de Aves de Rapina Neotropicais, mantido pelo Fundo Peregrino, conduz um programa de conservação de águias, falcões, gaviões e corujas em vida livre e cria aves em cativeiro para introdução na natureza. Onze harpias já foram soltas desde 2004, as últimas três nas florestas de Belize, Guatemala e México.
Um ninho na periferia
Na Amazônia, os casais de harpia constroem ninhos em árvores altas, a 30 ou 40 metros do chão. Com cerca de 1 metro de diâmetro, eles são feitos de galhos entrelaçados e forrados com folhas e ramos mais macios no interior. O ninho costuma ser reformado e reutilizado a cada nova postura. E os cuidados para mantê-lo limpo e arrumado incluem deveres para todos os membros da família. Mesmo pequeno, o filhote instintivamente ‘atira’ longe as fezes, sem nunca manchar sua ‘casa’.
A observação deste e de outros comportamentos do cotidiano das aves é raríssima, mas pelo menos uma cidade pode se gabar de atrair turistas para ver sua família de harpias: Alta Floresta, no norte de Mato Grosso.
Um casal com um filhote foi casualmente descoberto num remanescente de mata da periferia da cidade, perto do aeroporto e do hotel Floresta Amazônica, freqüentado por muitos observadores de aves. Desde então, fazer a trilha para tentar ver a harpia é uma opção disponível para os hóspedes.
A pedido de fotógrafos especializados e repórteres, a proprietária do hotel, Vitória da Riva Carvalho, construiu uma plataforma, sobre a qual o fotógrafo e cinegrafista de nossa equipe, Carlos Alberto Coutinho, fez plantão durante alguns dias, registrando as primeiras tentativas de voo do filhote, que reproduzimos nestas páginas.
 
* Essa matéria foi produzida originalmente para a revista Terra da Gente, edição número 38, de junho de 2007. Faz parte do BibliotECO, área do site Terra da Gente destinada a abrigar o arquivo da publicação.

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